sábado, 29 de outubro de 2016

Das coisas da moda

(Quer saber que eu estava ouvido quando escrevi? clique aqui )

Não me deixa feliz começar a escrever qualquer coisa com "Eu". Ou verbos conjugados na primeira pessoa. Me faz sentir meio egocêntrica. E pensando na linha que viria a seguir lembrei de uma conversa na mesa do café da manhã sobre identidade. Resumidamente falávamos que a construção da identidade parte da convivência com o outro. Falávamos sobre seguir ou não tendências e que mesmo quando não as seguimos é por causa destas que andamos na direção oposta, logo, estamos sempre sob influência dos modismos. Para o sim e para o não.

   Eu (eu!) gostava de Jack Johnson e meus amigos nem sabiam quem era. Eu li Kerouac pelo menos uns dez anos antes de o filme parar nos cinemas (e confesso sem constrangimento que comprei o livro quando vi na contracapa a foto do autor - com um jeito meio James Dean - e desejei tomar um café com ele. E daí? Quem nunca?). Acho que num determinado momento eu quis muito ser uma pseudo intelectualóide-cult e ficava procurando aquilo que não era modinha ainda nas bandas de cá. Até o dia em que conheci um.

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   No meio de tanta gente, lá estava ... o cara que usava lenço à moda europeia e conquistava a todos com críticas densas de filmes "B", referências musicais do underground cult, comentários inteligentes sobre política e um humor ácido e descontraído quando o assunto era a burguesia elitista, os "novo rich" e os hippies da praça XV.
  Confesso que fiz questão de parecer blasé e pouco interessada, mas na verdade não conseguia não estar prestando atenção ao cara do lenço à moda europeia. Bonito, bem vestido, sorriso de propaganda de creme dental. Até que em um certo momento (não sei como exatamente isso aconteceu, too many caipirinhas na praia, eu acho) me pego sentada no deck conversando com o cara do lenço. Ouvindo histórias incríveis sobre um Ashram na Índia, a culinária peculiar da Noruega e como ele viajou por um ano inteirinho, o que ele adorava repetir na expressão "ano sabático".
   Num dado ponto da conversa, meu complexo de Bob  (se não sabe do que tô falando assista aqui) já tinha me levada pra outro lugar, imaginando as coisas mais doidas e a voz do cara do lenço era apenas um eco... Tentei fazer o moço ficar quieto, ofereci alguns beijos e olhares insinuando que aquele lugar não seria apropriado para minhas intenções. E já no carro, o cara do lenço interrompeu o amasso com a seguinte declaração: "Olha, não costumo me interessar por pessoas que não tem pelo menos uma bagagem intelectual minimamente satisfatória. mas tu és como uma iguaria a ser experimentada, uma personalidade crua e intrigante. Com a curadoria certa, vais longe." Ele pára, me olha profundamente com olhar sedutor e me diz "Eu aceito ser seu mentor". E como se estivéssemos em um filme mexicano de quinta categoria, me beija com tamanha devoção que me deixa paralisada. Eu ouvi isso mesmo? Não, espera. Sério? Me desvencilhei do cara do lenço, que a essa altura mais me lembrava um polvo em meio a um ataque epilético tentando me segurar em todas as partes ao mesmo tempo e ainda incrédula e sem saber o que dizer, calei. Juntei minhas coisas e saí andando. Ele não veio atrás de mim, tampouco fez qualquer contato depois disso.
   Nos encontramos ainda algumas vezes em meio a amigos em comum. Ele me olhava com um olhar misterioso digno de um galã mexicano e eu só tinha vontade de rir. Impossível não pensar no cara do lenço toda vez que eu encontro alguém preocupado demais em mostrar o quanto é interessante / inteligente.
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Minha infância, marcada pelo abandono, me levou a acreditar que eu precisava ser "especial" para que as pessoas gostassem de mim, Cheguei aos vinte e poucos anos devorando os clássicos da literatura, buscando bandas poucos conhecidas para gostar, discutindo Freud com a minha terapeuta, pesquisando sobre novas tendências e me inteirando dos assuntos do momento.
O cara do lenço me trouxe uma reflexão interessante naquela época. Nada externo, por mais incrível que fosse me faria alguém melhor. Muito menos eu poderia me deixar limitar por supostas experiências traumáticas da infância.
Placar final: Cara do Lenço 1 x 0 Terapeuta.

E em homenagem ao Cara do Lenço, um Tomate Confit (que de chic tem só o nome e o sabor, mas é muito simples de preparar), que teve seu modo de preparo desconstruído e simplificado, mas que continuou delicioso.


  • Corte tomates cerejas ao meio, em uma frigideira antiaderente refogue um dente de alho amassado em azeite, acrescente os tomates, abaixe o fogo, tempere com sal e pimenta e uma pitada de açúcar mascavo. O tomate vai soltar água e parece que tudo está perdido. mantenha em fogo médio mexendo apenas se necessário até que o liquido comece a secar, o funco caramelize e os tomates fiquem lindamente brilhantes. Recomendo fortemente finalizar com tomilho fresco ou orégano fresco. Se usar as ervas secas, use bem pouquinho para elas não roubarem o sabor delicado dos tomates. Acompanha lindamente torradas, ovos mexidos, ou o que seu coração mandar. 




 



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